22 de agosto de 2020

Antonio Sá da Silva

Histórias bíblicas, aborto e estupro de incapaz: o silêncio também não é uma forma de testemunhar a fé cristã?

Vivemos uma era que não somente o acesso à informação foi democratizado, mas, também, surgiram outros tipos de público e cada um de nós pode se tornar um grande comunicador; entretanto, podemos opinar sobre qualquer assunto, inclusive aqueles cuja experiência só se vive na esfera da intimidade, protegidos pela irrepetibilidade? Uma mulher que nunca sofreu violência sexual ou experimentou uma gravidez indesejada, por exemplo, assim como o homem que por natureza nunca experimentará uma gestação, têm algo a dizer sobre o aborto?

O aborto feito por uma menina de 10 anos, cuja gravidez decorreu de estupro ocorrido durante anos dentro de casa, frequentou as páginas jornalísticas na última semana, despertando solidariedade e ódio na população; vivemos em um mundo plural, sendo muitas as concepções da vida ética, daí que duas coisas precisam ser esclarecidas: primeiro, ninguém pode exigir que o Estado e o direito tomem partido na intimidade de quem quer que seja, seu papel é cuidar do bem comum e proteger nossas liberdades; segundo, ser cristão como sou não me dá o direito de julgar quem age em desacordo com o que eu acredito ser uma prática cristã, ainda que eu acredite ser escolhido diretamente por Deus e com exclusividade para interpretar sua palavra.

Algumas filosofias da linguagem advertem para a impossibilidade atual de conhecermos e opinarmos sobre a vida de todo mundo, como Lyotard que disse que se Deus encontrasse Hitler no deserto, provavelmente não o reconheceria, dando de beber a quem adiante perseguiria o povo eleito. Muitas narrativas bíblicas enaltecem o silêncio e censuram a tagarelice, mas uma delas é exemplar: aquela que Jesus, diante dos doutores da lei, senhores orgulhosos que se achavam a fortaleza da moral hebraica, ignorou toda aquela gritaria, preferindo rabiscar o chão com o dedo. Entendeu-se que Cristo respeita quem discorda d’Ele, não julga ou apedreja, tal como certos arautos da moral cristã.

Opinar sobre uma experiência que não viveu e nunca viverá, exigindo o flagelo físico e psíquico de uma criança, sob qualquer pretexto é uma indigência moral preocupante, sobretudo quando tal sacrifício é exigido em nome de quem um dia nos advertiu: “Ai de vós escribas e fariseus hipócritas que pagais o dízimo do hortelã, do erva-doce e do cominho, mas esquecem das três coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mateus 23,23).

Sobre o autor

Antonio Sá da Silva
Professor e Pesquisador/Direito (UFBA). Doutor e Mestre/Ciências Jurídico-Filosóficas (Universidade de Coimbra). Conferencista e Consultor Jurídico. Advogado.

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