06 de abril de 2018 

Antonio Sá da Silva

O Juiz no Teatro Grego e na Atual Sociedade do Espetáculo ou Da Origem e Degeneração dos Tribunais

Já faz algum tempo que tenho me ocupado com o problema das decisões judiciais, por outras palavras, com a discussão entre os teóricos sobre a possibilidade ou não de um método jurídico que, uma vez adotado pelo juiz, possa justificar a decisão tomada, ainda que a mesma não agrade ao auditório. Nessa pegada é que acompanho, preocupado, um fenômeno que anda ocorrendo com o Judiciário brasileiro e antes visto somente no futebol: a espetacularização das decisões, nas quais, como num Fla x Flu ou num Ba x Vi, duas plateias se opõem e cada um dos espectadores se converte em juiz da partida. Todo mundo, à direita ou à esquerda do gol, clama por justiça, isto é, exige que o juiz entregue a taça ao seu time, mesmo que este abuse das faltas ou esteja estropiado durante o jogo.

Vivemos numa sociedade de informação, algo mais grave no Brasil onde impera a vulgar concepção de liberdade de imprensa como o direito de publicar o que se quer, inclusive com o consentimento do Judiciário que não leva a sério outro mandamento constitucional: o da justa reparação às vítimas de um sistema privado de comunicação que cria fatos ou os deturpa, converte notícias, pessoas e instituições em espetáculos. Ontem vi tantas piadas nas redes sociais sobre o julgamento do HC de Lula no STF que fui conferir alguns lances; fiquei admirado com a confirmação do que já vinha sendo especulado. É que Marco Aurélio, depois que Rosa Weber deixou claro que estava sendo obrigada a votar contra sua consciência a respeito da prisão em 2ª instância, disse sem rodeios a Carmem Lúcia que a mesma manipulou a pauta do Supremo, substituindo o “método jurídico” pela “estratégia”, visando alcançar o resultado que ela queria: o de (supostamente) conduzir o paciente à cadeia o mais rápido possível, colaborando com a mídia, grupos sociais e até religiosos que sem nenhum pudor, têm adotado a tática de expor, criar intrigas, constranger e até ameaçar seus colegas ministros.

Os juristas aprendem desde cedo com a filosofia jurídica e com a história do processo que o modelo ocidental do julgamento foi inspirado no teatro grego, numa trilogia de Ésquilo (séc. V a.C) intitulada Oresteia, isto é, naquela que narra a trágica história da família de Orestes e que terminaria com ele, um belo jovem, mas que veio ao mundo com um destino a cumprir: o de matar a própria mãe, vingando a morte do pai, assassinado por ela para vingar a morte da filha, sacrificada por ele no altar da deusa Ártemis… tudo por causa de uma desavença passada entre o avô de Orestes e o irmão, cujo desfecho final foi um alarmante banquete no palácio real, onde ardilosamente o velho Atreu assassinou os sobrinhos e serviu ao próprio pai, junto com outros manjares e vinhos. Muito sangue teria escorrido até Atena interromper esse primitivismo de vingadores, instituindo um tribunal de anciãos: qualquer desavença deveria ser resolvida por um conselho cujos membros, pela retidão moral e experiência de vida acumulada, decidiam sem a influência das paixões que se acercam das multidões.

A apropriação da justiça pelo “terceiro imparcial” institucionalizou a luta contra a impunidade, mas constituiu também uma vitória contra a sede de sangue das erínias, as deusas que cumpriam um papel que era do Ministério Público até bem pouco tempo atrás: o de perseguir o criminoso (não o de buscar a justiça) a qualquer custo, com os recursos que quisesse e pudesse, para que o mesmo expiasse sua culpa perante os deuses. Como Max Weber ensina, talvez por ironia do próprio destino, foi o direito canônico que nos libertou desse primitivismo religioso do processo: as preces, o ódio e o sentimento pessoal de justiça do acusador foram substituídas pela prova judicial, produzida e controlada publicamente. A prevalecer, pela postura de alguns de nossos homens e mulheres do foro (e ainda bem que esta não é a regra), a conversão dos julgamentos em espetáculos, por vaidade pessoal ou por interesses menos confessáveis, a função judiciária se encontra hoje gravemente ameaçada; um pouquinho de sociologia da comunicação e de observação às atitudes da nossa mídia são suficientes para perceber como os juristas têm sido manipulados, descartados e depois recauchutados para servirem a muitos propósitos, entre os quais não está o de servir à justiça.

Sobre o autor

Antonio Sá da Silva
Professor e Pesquisador/Direito (UFBA). Doutor e Mestre/Ciências Jurídico-Filosóficas (Universidade de Coimbra). Conferencista e Consultor Jurídico. Advogado.

Jorge Fernandes Santos

06/04/2018

Eu entendo que o excelentíssimo sr.Antônio sa e talvez a maioria dos juristas do do Brasil estão corretissimo .O problema é que os nossos juízes estão acovardados com a mídia como um todo. Veja o caso da Rosa Weber…

Jairo

08/04/2018 

Confesso que a atual espetacularização da Justiça tem me deixado bastante preocupado e reflexivo. Basta lembrar a apreciação do HC impetrado pelo ex Presidente da República, o Lula, sobre execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão penal condenatória.
Foi então que me deparei com esse texto de indescritíveis precisão e brilhantismo, da autoria do Professor Antonio Sá da Silva, em que o mesmo manifesta uma leitura crítica rica e sensata acerca desse nebuloso cenário polarizado…

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