12 de julho de 2020

Antonio Sá da Silva

O Rei Salomão, o Ministro Noronha e o caso Queiroz: sendo o direito casuístico, ficam permitidos os casuísmos?

Não, por isto a opinião pública e os juristas ficaram perplexos com a decisão do Presidente do STJ que mandou Queiroz e sua mulher para casa, não pela sua materialidade (a existência do direito), mas pela forma (a justificativa utilizada) como a decisão foi proferida. Não há dúvida de que as condições médico-sanitárias do preso deveriam ser levadas em conta pelo julgador, afinal, se a prática da crueldade fosse o objetivo do Estado-juiz, o que lhe diferenciaria do criminoso e por qual motivo o cidadão, podendo contratar milícias ao seu próprio gosto, financiaria os serviços de segurança pública, cujos agentes podem até decidir contra os interesses de quem paga seus salários?

Numa conhecida história bíblica um sábio juiz, o Rei Salomão, tomou uma decisão sob medida para uma querela aparentemente insolúvel entre duas mulheres (1Reis 3,16-28); diz o autor que dando à luz quase no mesmo dia, uma acusava a outra de substituir ainda no leito um filho vivo pelo outro que nascera morto; não havendo quem testemunhasse, o rei engendrou uma decisão bastante singular: com uma espada em riste, sentenciou que dividiria o filho vivo ao meio, dando a cada uma sua metade; a metodologia empregada permitiu que a justiça no caso concreto fosse feita, pois no fundo o julgador já sabia que a verdadeira mãe preferiria ser privada do seu filho a testemunhar a sua morte.

Isto mostra que as sentenças judiciais não são convincentes como as matemáticas, do tipo 2+2=4, pois cada caso tem uma particularidade que o juiz deverá observar: o investigado que prejudica o resultado da investigação pode ser encarcerado, mas se isto colocar em risco a saúde e a segurança do preso, será preciso ajustar a lei ao caso concreto para que nenhum bem jurídico pereça. Os seguidores de Aristóteles elogiam o filósofo por notar que o raciocínio dos juristas, políticos, economistas, etc., será sempre tópico e não científico: suas conclusões não têm força suficiente para convencer a totalidade do auditório como as de um professor de geometria, mas têm a obrigação de obter o apoio dos “membros esclarecidos” de uma comunidade de intérpretes.

A origem do direito é tópica: os juristas romanos (séc. I-III d.C) autonomizaram a prática jurídica da prática religiosa, política e econômica, tal como era antes deles; por isto que nas aulas de História do Direito aprendemos que os gregos foram bons filósofos, mas quem inventou o Direito foram os romanos; ocorre que eles tinham poucas leis e casos originais para serem resolvidos, por isto cada um era resolvido com a sabedoria acumulada dos casos anteriores. Hoje em dia aprendemos a dar valor às leis e outras normas, pois dão mais previsibilidade às decisões; daí que não precisamos ser adeptos da tópica jurídica como Viehweg, da teoria da argumentação como Perelman, etc., pois há explicação melhor como a  de Castanheira Neves quando diz que a decisão judicial opera numa dialética sistema-problema: parte sempre do caso e não da norma, dialogando com o sistema jurídico, de forma a modela a decisão apropriada para o caso.

Digo isto porque o único problema da decisão do Ministro Noronha não é ter dado uma solução própria para o caso de Queiroz, pois é da natureza das decisões que seja assim; a questão é que ao invés de ser tópica ela é só um exemplo de casuísmo, isto é, não é universalizável como deveria ser: uma decisão que não pode ser aplicada a outros casos semelhantes nunca é racional, seria apenas se os juízes de execução penal, no sistema carcerário caótico como o nosso, pudessem materialmente atender ao justo pedido de outros presos. A constatação de que a decisão não é tópica se reforça porque: o próprio ministro negou habeas corpus a dezenas de pessoas em situações de risco talvez piores que a do investigado; a esposa foragida não era a única pessoa que poderia cuidar do moribundo; parece predominar, na comunidade dos juristas, a opinião de que a mesma se descolou do sentimento de justiça que seus membros partilham.

Sobre o autor

Antonio Sá da Silva
Professor e Pesquisador/Direito (UFBA). Doutor e Mestre/Ciências Jurídico-Filosóficas (Universidade de Coimbra). Conferencista e Consultor Jurídico. Advogado.

Carlos Freitas

16/07/2022

Muito boa e acertada a análise, professor Antonio Sá.

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