14 de abril de 2018
Antonio Sá da Silva
Uma semana de tempestades marítimas mergulhou Antonio, um rico comerciante de Veneza, numa tragédia que liquidou seus negócios e atormentou a sua vida: perdeu toda sua riqueza e não teve como pagar o empréstimo que Shylock, um judeu que emprestava dinheiro a juros, fez a Bassânio com o aval do Mercador; com isto, foi levado ao tribunal e ameaçado de perder uma libra de carne de suas costas, tal como constava do contrato para o caso da dívida não ser paga no prazo. O debate que ocorre no julgamento desse processo nos convida a pensar numa questão que sempre inquietou juristas e filósofos: qual a validade da lei escrita e em que medida a interpretação pode criar direito novo.
A peça de Shakespeare nos surpreende a cada lance, dada a eloquência e criatividade interpretativa de Pórcia, o advogado que defenderá Antonio da crueldade de Shylock: sempre a afirmar que o credor “terá mais justiça do que pretendia”, nos leva a perceber que qualquer texto é uma coisa frágil e edificante ao mesmo tempo, dependendo da habilidade de quem o interpreta. Disto se pode dizer que o debate que tem feito a terra tremer no Supremo Tribunal Federal, sobre o poder do juiz emprestar um sentido novo ao que se lê da Constituição de 1988, não é tão simples como sugerem tanto os liberais como os conservadores que porfiam naquela arena discursiva. É preciso esclarecer antes o que na tradição ocidental se entende por lei e como essa discussão chegou até nós.
Um filósofo pré-socrático, Heráclito, afirmava que os cidadãos (e os juízes mais ainda) têm que defender as suas leis tal como um exército defende as fronteiras de seu país. O filósofo grego dizia isto porque no seu tempo a lei era vista como a única proteção que os humanos possuem contra a arbitrariedade da fortuna: uma cidade sem lei (nomos) deixa os humanos sob o jugo da Natureza (physis), onde reina a imprevisibilidade e a consequente insegurança humana. Ocorre, todavia, que a palavra lei não é utilizada ali com o sentido que hoje utilizamos: se entre os gregos e em geral entre os teóricos pré-modernos ela é apenas uma declaração do direito que preexiste à vontade humana (o direito natural que emana do cosmo ou que Deus grava diretamente em nossas mentes e corações), entre os filósofos modernos, sobretudo depois de Montesquieu e Rousseau, a lei é um texto escrito pelo órgão Legislativo do Estado, o soberano criador do direito.
Sabemos que a causa dessa mudança de significado foi a busca de mais segurança para os cidadãos: foi uma vitória contra o despotismo dos reis e a imprevisibilidade dos juízes, sendo certo que Beccaria fez do “princípio da legalidade criminal” a máxima fundadora do direito penal moderno. Sabemos que nem a moderna e muito menos a pré-moderna concepção da lei pode prevalecer hoje em dia: o direito não é apenas um conjunto de textos e dos quais a gramática jurídica se ocupa, mas também não pode ser aquilo que intérpretes voluntariosos e juízes dizem que ele será. O realismo de Holmes que afirmava que “o direito é o que os tribunais decidem” me parece insustentável, mas o Iluminismo exegético que reduziu o juiz a um mísero papel de ser a “boca da lei” desde muito ficou superado. Se a tentativa de interpretar a Constituição tem levado magistrados a escreverem um texto novo e isto de fato é alarmante, duas questões imediatas devem ser colocadas: (1) o texto da lei em si não evidencia todas as potencialidades e sentidos do direito, sendo como Santo Tomás de Aquino dizia, apenas uma ferramenta que o juiz utiliza para realizar a justiça sedimentada na comunidade; (2) por mais aberta que tenhamos de considerar uma obra humana, o intérprete não está autorizado a fazer dela uma outra coisa, mas como Dworkin disse, fazer com que seja a melhor obra possível.
Penso que O Mercador de Veneza tem uma advertência a nos fazer: o legislador é incapaz de se resguardar de um sentido diferente do que queria empreender (Shylock pretendeu criar uma armadilha para se vingar dos insultos de Antonio, caso Bassânio não pagasse a dívida) e de prever circunstâncias de aplicação que se conhecesse não editaria tal lei. Neste sentido é que a prudência (a sabedoria prática decantada pela experiência de vida) dos intérpretes, várias vezes lembrada por Shakespeare pela boca das suas personagens, deveria acalmar a hybris (a soberba, ela que para os gregos era o modo de agir do agente que se considera acima da lei) de alguns julgadores; se é preciso reconhecer a porosidade da lei e não se prender à literalidade da Constituição, pois como Aristóteles homenageia Eurípides lembrando que “a mudança é doce” quando a circunstância se alterou desde que selamos um compromisso, é claro que o Supremo tem até a obrigação de atualizar texto de 1988; todavia, se a lei é um artefato humano para nos proteger da ação aleatória da Natureza (inclusive da humanidade do juiz que naturalmente simpatiza ou antipatiza pelas partes) e nos fazer mais felizes, essa atualização não pode ser feita para que as coisas piorem, isto é, pode só para expandir os Direitos Humanos e nunca para reduzi-los.
Antonio Sá da Silva
Professor e Pesquisador/Direito (UFBA). Doutor e Mestre/Ciências Jurídico-Filosóficas (Universidade de Coimbra). Conferencista e Consultor Jurídico. Advogado.
15/04/2018
Professor, gosto muito de seus textos e acho que a forma como o Sr. recorre a obras clássicas e à filosofia para tratar de temas atuais é impressionante. Muita autoridade na construção dessa ponte. Entretanto, não sei se por prudência (exigida pelos tempos de radicalismo em que vivemos), não vejo muita contundência no posicionamento, muita clareza na opinião, se ela é possivelmente polêmica. Com todo o respeito, creio que é possível, necessário, que haja um posicionamento mais claro quanto aos tempos atuais, já que estes se caracterizam por serem tempos de gritaria sem fundamentos, discussões sem argumentos. É preciso que as vozes que possuem autoridade no argumento se pronunciem.
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