12 de junho de 2022

Antonio Sá da Silva

“Pantanal” e o debate contemporâneo sobre a justiça: qual critério José Leôncio deve usar para entregar a sela de prata a um dos três filhos?

Já disse nesta coluna e noutros lugares que o romance, a música, o teatro, etc., podem ser grandes aliados na discussão sobre política, direito e outros temas de interesse social; nesta semana a dramaturgia brasileira, admirada no mundo todo inclusive por discutir no horário nobre estas questões, suscitou o debate acerca de um tema que desde os versos homéricos e hesidióticos, na Grécia arcaica, permanece atual: a novela “Pantanal”, reescrita por Bruno Luperi e em exibição na TV Globo, mostrou o embate entre José Leôncio e a sua cunhada, Irma, sobre o critério de justiça a ser adotado na escolha de um dos filhos para ficar com a sela de prata do avô Joventino.

A discussão sobre como fazer a coisa certa não tem consenso entre filósofos, juristas, economistas e politicólogos; a primeira teoria da justiça no Ocidente é a dos pré-socráticos, qual seja, a de que uma decisão justa é aquela que restitui as coisas aos seus devidos lugares; na “República”, de Platão, Sócrates discorda dela, mas também contesta a tese de Trasímaco, o sofista que define a justiça como “a conveniência do mais forte”; a estes conceitos se somam outros ao longo da história, candidatos a orientar José Leôncio para não cometer uma injustiça; cada uma arrasta a personagem de Marcos Palmeira numa direção, a exemplo da última que o levaria escolher sem remorso um dos três, pois afinal ele é o dono de tudo que há na fazenda e todos o reconhecem como o melhor peão das redondezas.

Um jurista romano, Ulpiano, nas pegadas da filosofia grega reinventada por autores como Cícero, Santo Agostinho, etc., definiu a justiça como “a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”; o foco neste período, usando aqui uma expressão cunhada por Santo Tomás, era a exigência do bem comum, o que mandaria o pai entregar o acessório de montaria ao filho que se mostrasse menos egoísta no seu uso. Ocorre, entretanto, que durante o Iluminismo, quando o comunitarismo pré-moderno entrou em declínio e triunfaram as aspirações individualistas burguesas, o critério de justiça que floresceu foi a do contrato social (Hobbes, Locke, Rousseau, etc.); mesmo com a importante reinvenção contemporânea de John Rawls, o argumento é mais ou menos o mesmo: supondo que todos os humanos são iguais, livres e inteligentes para andarem com as próprias pernas, sugere que o futuro da sela seja decidido pelo consenso entre as partes interessadas.

Não foi este, porém, o critério que José Leôncio escolheu. Um comunitarista atual, Michael Sandel, disse que há hoje um senso comum sobre o que é justo, conhecido por “meritocracia”: somos na vida o resultado de nossos esforços pessoais, o que livraria o pai de fazer a difícil escolha, ao contrário desafiando cada um a mostrar em cima da sela (como aliás diz João Gomes, no “piseiro” “Meu Troféu”, uma música da novela), que merece ser o sucessor de uma família de peões. Alguns utilitaristas, a exemplo de Posner, defendendo que a escolha justa é a que aumenta os ganhos e diminui as nossas perdas, ainda poderiam recomendar a entrega do troféu ao que se mostrasse mais apto a transformar a fazenda (gerida pelo saudosismo e pela responsabilidade ambiental do seu dono!) num negócio lucrativo, mesmo porque sua assessoria vive a fustigá-lo com ideias do agronegócio do nosso tempo.

Mas eu mesmo torço por um desfecho que assimile uma teoria da justiça mais vibrante e compatível com a concepção de Direitos Humanos que também adoto. Com efeito, Irma, contrapondo à simplificação de uma questão complexa que está levando a solução para uma raia de cavalos, afirma que seu sobrinho, Jove, já estaria excluído da competição, algo que ele mesmo reconhece ao fazer um pacto com o Demo para escolher o cavalo mais ligeiro; seu sobrinho não teve chance igual de florescer suas capacidades, tal como os demais que cresceram sobre um cavalo. Esta é a ideia de justiça que se extrai do economista e filósofo indiano Amartya Sen e da filósofa americana Martha Nussbaum, inspirados, sobretudo, na ideia de Aristóteles sobre a felicidade e a comunidade política: de acordo com ele, uma vida bem-sucedida depende de muitos bens, muitos dos quais o sujeito não têm controle, daí que dependa de tempo e de apoio para adquirir e fazer florescer suas capacidades de ser e de atuar. Comentem depois aqui o que acharam da disputa!

Sobre o autor

Antonio Sá da Silva
Professor e Pesquisador/Direito (UFBA). Doutor e Mestre/Ciências Jurídico-Filosóficas (Universidade de Coimbra). Conferencista e Consultor Jurídico. Advogado.

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