14 de dezembro de 2017

Antonio Sá da Silva

O que a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e o samba de Bezerra da Silva têm hoje a nos dizer sobre a depreciação da ética pública?

A um partido-alto do Rio de Janeiro, Bezerra da Silva, cuja língua afiadíssima denunciou aos quatro cantos e por muito tempo a conivência do Estado com o crime, talvez venha ocorrer daqui a algum tempo o que se deu com Santo Antônio, o santo português do séc. XIII que se diz ter a língua preservada até hoje e por causa do bom uso que fez dela para denunciar as contravenções de sua época. Mas não sejamos ingênuos a ponto de transformar a ALERJ na “Geni” da nação, pois o problema é muito mais grave do que parece quando alguns que fogem da polícia incendeiam outros para, no meio da fumaça, escaparem com vida.

A bem da verdade, quando outro santo, Santo Agostinho, refletindo sobre os motivos que levaram o Império Romano a sucumbir naquele séc. V, afirmou que é pela justiça, pela utilidade comum das pessoas, que os legisladores legislam, que os governos governam e que os juízes julgam: afastados deste compromisso, “tais agentes se convertem numa quadrilha de ladrões e salteadores”. O enfrentamento desse desvio de função não dispõe de uma resposta messiânica, capaz de nos redimir do pecado da corrupção: a história da administração pública não testemunha nada mais auspicioso que a luta entre a “Cidade de Deus” e a “Cidade dos Homens”, como o Bispo de Hipona escreveu e Bezerra da Silva acentuou, isto é, sempre houve e sempre haverá quem vai se esconder “atrás da gravata e do colarinho”, procurando se tornar invulnerável às reprimendas da lei.

Um jesuíta mineiro, Henrique Cláudio de Lima Vaz, para alguns o maior filósofo brasileiro, notabilizou-se em vida dentre outros pelos seus importantes estudos de antropologia cultural; denunciou exemplarmente o grande paradoxo da nossa civilização: a de ser “prodigiosamente avançada na sua razão técnica e vergonhosamente indigente na sua razão ética”. De fato, dispomos hoje de recursos, conhecimento e tecnologia suficientes para erradicar todos os males que atormentam a humanidade desde a sua origem; continuamos, todavia, tão iguais como sempre fomos: egoístas, narcisistas e dissimulados. “A corrupção é só aquilo que os outros fazem”… E parece que nunca se bradou e se silenciou tanto em tão pouco espaço de tempo contra a malversação da coisa pública como agora; como tudo que se usa muito sem cuidado, a palavra “ética” se gastou e talvez nada mais seja para alguns que uma palavra banal como outra qualquer.

Diante deste cenário de terra arrasada, mesmo que por vezes a situação se pareça à de Santo Antônio e do Padre Antônio Vieira quando tiveram por auditório apenas os peixes do mar, é preciso evitar o desolamento de Bezerra da Silva quando chegou a dizer que “para tirar o Brasil desta baderna, só quando o morcego doar sangue e o saci cruzar as pernas”. O momento é muito propício para o velho “político caô caô”, que para se perpetuar no poder, arruma sempre uma veste nova e a moda agora é se apresentar como “político não político”; é propício também para o caô caô que bota pinta de herói, trata o problema da população como um problema de polícia, promove (contraditoriamente) o armamento da população e a indústria armamentista. Não queiramos terceirizar nossa responsabilidade de participar ativamente da discussão dos nossos problemas, por isto que Platão, preocupado com a crise ética que assolava as instituições públicas de sua época e embora não acreditando muito na democracia ateniense, não deixa de nos ajudar a refletir sobre os desafios que agora temos pela frente: “o pior castigo que sofreremos quando abrimos mão do direito de governar é sermos governados por gente pior do que nós”. Anote isto para não esquecer…

O ano de 2017 realmente abusou em atitudes próprias de humanos e que têm a incrível capacidade de deixarem a humanidade mais pobre: desde ações praticadas por vizinhos muito próximos, passando pelas da galera irada das redes sociais até alcançar as de lideranças políticas importantes no mundo, foram muitos os testemunhos de fraqueza humana, expressa na tentativa de rebaixar outros povos ou pessoas que consideram uma ameaça ao seu projeto de felicidade. Se é verdade que sempre existiram pessoas com dificuldade de conviverem com quem tem propósitos de vida diferentes dos seus, se é verdade que essa “patologia” se converteu num “fenômeno social” durante a modernidade a ponto de Locke e Voltaire denunciarem seus riscos para uma existência humana fraterna, hoje em dia se tornou uma “arma de guerra” muito mais destrutiva: como um vírus que se propaga e instala com facilidade em nossas mentes e cidades, a intolerância política, religiosa, sexual, cultural, etc., é de longe a principal preocupação de filósofos morais em um tempo de agressões gratuitas e insanidade generalizada.

Sabe-se que pensadores importantes de nosso tempo como Habermas, Derrida, Taylor, Welzer, etc., teriam respostas importantes para o que se tem chamado de “discursos do ódio”. Mas eu queria aproveitar essas festas de fim de ano e esta última coluna de 2017 de nossa “República de Leitores” para sugerir uma outra reflexão: faço isto invocando uma experiência exemplar… a Festa de Reis. É que para além de uma expressão da religiosidade popular, trata-se de um testemunho valioso de hospitalidade ou pelo menos de tolerância com outras visões do mundo diferentes da que cada um aprendeu desde cedo a defender. A origem dessa tradição está no Evangelho de Mateus e na cultura oral de nosso povo, dando conta de que ao visitarem o recém-nascido na periferia de Belém, aqueles três reis do Oriente (aqueles três sábios da Pérsia, Índia e Arábia que enfrentaram os perigos do deserto e as nações inimigas para presentearem ao novo rei com ouro, incenso e mirra!), realizaram um exercício de humildade cultural, religiosa e política importante: acolheram em suas vidas o Menino Deus rejeitado pelos judeus, a sua nação.

Os festeiros que guardam a tradição do “Dia de Reis” preservaram a lição do interesse pelo estrangeiro e do esforço para conhecer o seu projeto de vida boa, podendo nos inspirar, também, no tratamento das pessoas que mesmo não sendo “uma das nossas”, merece nossa consideração e o melhor que temos para lhes oferecer: os “reiseiros”, o nome pelo qual eu próprio os conheço desde cedo na fazenda, repetem todos os anos e estimular a experiência da visita à “lapinha de Belém”. A visita, como Kant nos ensina, é de fato uma experiência edificante para a humanidade, pois sem nunca pretender substituir a lei do hóspede pela do dono da casa ou a deste pela do visitante, ajuda a partilhar este patrimônio comum da humanidade que é a terra. Neste tempo em que não faltam pessoas alucinadas acreditando que têm uma vida superior à das outras, por vezes se remunerando no trabalho de profanar outras vidas e pedir que o Estado substitua suas leis pelas que esses “reformadores do mundo” acreditam, Santos Reis lhes ensina que a casa do estrangeiro é um templo sagrado que não se pode violar.

Você já prestou atenção que os reiseiros cantam primeiro no terreiro da casa, terminando sempre com um “Viva Santos Reis e os donos da casa”? A soleira da porta só é adentrada quando se ouve o “Viva” que vem de dentro, a senha que indica que a nossa mensagem interessa ao morador e podemos nos apresentar, como um estrangeiro, claro, mas como aquele hóspede indiano que vai ao encontro do anfitrião e se abraçam com uma mística saudação: “O deus que está em mim saúda o deus que está em você”. Amém.

Sobre o autor

Antonio Sá da Silva
Professor e Pesquisador/Direito (UFBA). Doutor e Mestre/Ciências Jurídico-Filosóficas (Universidade de Coimbra). Conferencista e Consultor Jurídico. Advogado.

Marcia Paraquett

05/10/2017 

Sempre muito precisas as discussões de Antônio, regadas sempre com boa filosofia.

Murilo

Excelente essa fusão da filosofia com a política e imprescindível nos dias atuais

05 de dezembro de 2017 às 23:59h

Mateus Silveira

06/10/2017

Que reflexão atual que Platão trás para o ano de 2018. Grandes contribuições feita por Antônio, vinculando a filosofia com a ética pública.
Parabéns, belíssimo trabalho.

Sérgio Leão

06/10/2017 

As canções do saudoso tem roupagem melódica e rítmica envolvente. Contudo , seu objetivo era mesmo através de letras maravilhosas denunciar os verdadeiros bandidos. Os ladrões estão realmente escondidos atrás das gravatas e dos colarinhos..

Wantuil Novais Filho

09/10/2017

Impactante! Onde está o conhecimento senão nas coisas mais simples? Uma música, um grande ensinamento.

Disse meu amigo Antonio de Sá.
Com voz vibrante,
calmamente,
conhecidamente,
especificamente,
calorosamente.
Mas, disse gritando,
não um grito que ecoa nos ares,
mas que estronda dentro de nós,
sacoleja-nos,
faz-nos acordar do torpedo da miséria de sentimentos
e nos remete a um espelho que não nos fala: ” você, minha Rainha, é a mais bela” , mas sim: Acorda de sua hipocrisia e viva a realidade dos acontecimentos”
Wantuil Novais Filho – 09/12/2017

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